segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Celular

Coisas da era do celular. Quando a turma se reunia no bar, e a conversa esquentava, e as bolachas de chope começavam a se multiplicar sobre a mesa, era comum alguém ser lembrado - alguém que prometera ir ao bar e não aparecera, alguém do passado comum de todos que ninguém mais vira - e em seguida tentarem localizá-lo pelo telefone celular. "Liga para esse vagabundo", eram as palavras de ordem, e depois todos se revezavam no telefone, xingando o ausente, intimando-o a aparecer, imitando voz de mulher e dizendo "Adivinha quem é?", ou fazendo ruídos de bichos.


***

Uma vez foram, literalmente, longe demais. Alguém na mesa perguntou "Que fim levou o Santoro?" e passaram a catar o Santoro com o celular. Primeiro ligando para um número antigo dele, depois localizando uma irmã dele através de uma moça do serviço de assistência ao assinante miraculosamente eficiente, depois chegando ao póprio Santoro, que fazia um curso de informática em Grenoble, na França, e atendeu o chamado apavorado.

- Que foi? Que foi?

- Seu veado! Onde é que você anda?

- É a mamãe, é? Mamãe está bem?

- Que mamãe? Aqui é o Jander.

- Quem?!

- O Jander. Já esqueceu dos amigos, é?

- Jander, você sabe que horas são aqui?

- Aí não é mais cedo?

Jander ouviu cinco minutos de desaforo antes de desligar o celular e dizer, magoado: "Como as pessoas mudam, né?". Depois souberam que o Santoro ficara tão nervoso com o telefonema no meio da noite que abandonara o curso de informática, abandonara a França, voltara para junto da dona Djalmira, sua mãe, e estava trabalhando no armarinho da família. O telefonema mudara a sua vida por completo.

***

Marℓey 23/12/2006 23:16 Outra vez um da turma chegou com o que dizia ser o telefone particular do Bush. Conseguira pela Internet, não entrou em detalhes. A idéia era ligarem para a Casa Branca e quando o Bush atendesse, fazerem ruídos de pum. Cada um um ruído diferente, pois há puns em vários estilos. Seria o comentário da mesa sobre a política externa do Bush. Mas alguém lembrou que os americanos provavelmente rastreavam todas as chamadas para a Casa Branca e poderiam localizá-los, por satélite, em poucos minutos, e o plano foi abandonado.

***

E havia casos tristes. Como a vez em que o Gilberto, bêbado, decidiu ligar para a sua ex-mulher e pedir a reconciliação. Foi convencido pelo Caco a deixá-lo falar em seu lugar, pois não estava em condições de conversar com ninguém, muito menos com a Edinha. O Caco intermediaria as negociações. Deixasse com ele. Quando atenderam o telefone, Caco falou:

- Alô, Edinha? Aqui é o...o... (Para os outros:) Como é mesmo meu nome?

O Caco estava mais bêbado do que o Gilberto. Mas falou em nome do amigo. Argumentou. Disse que o Gilberto ainda a amava. Que era outro, que não saía mais para beber com os amigos, que... Foi interrompido. A pessoa que atendera não era a ex-mulher do Gilberto. O Caco disse "Ah, não? Mas sabe que eu gostei da sua voz? Você tem voz de gata, sabia?". O Gilberto tentou arrancar o celular da mão do Caco. Com a sua mulher falava ele.

- Mas não é a sua mulher - protestou o Caco. - É engano.

- Mas o celular é meu. Portanto o engano também é.

Só não brigaram porque nenhum dos dois conseguiria se levantar. O que foi bom, porque ninguém na mesa tinha condições para apartá-los.

***

Na outra noite, o Gilmar disse que precisavam ligar para o Ferreirinha, para contar que o Internacional era campeão do mundo.

- Mas o Ferreirinha já morreu. Está no Além.

- Eu sei - disse o Gilmar, com o dedo já pronto para digitar. - Qual será o número?

Desta vez a moça da assistência ao assinante não ajudou, nem quando o Caco disse que ela tinha voz de gata.

Nenhum comentário: